Independente
das conclusões dos trabalhos científicos que pretendem responder se há ou não
alterações sensoriais nos autistas, é possível encontrar inúmeros relatos autobiográficos
de autistas que descrevem em detalhes peculiaridades na forma como percebem os
estímulos sensoriais. Alguns estímulos aparentemente comuns são percebidos como
algo estressante, causador de medo e ansiedade. Outros, como fontes de grande
prazer e satisfação.
Temple Grandim, atualmente uma mulher de aproximadamente 50 anos, PhD e professora universitária nos EUA, há vários anos conta em livros e congressos médicos a sua história como autista. No seu livro autobiográfico, Emergence: labelled autistic (1986), ela descreve como os movimentos giratórios lhe traziam prazer e segurança:
“Preocupada
intensamente com o movimento giratório de uma moeda ou tampa, não via ou ouvia
nada. As pessoas ao meu redor ficavam transparentes. Nenhum som se intrometia
na minha fixação. Era como se eu fosse surda. Mesmo um barulho alto não me
despertava do meu
mundo. Mas quando eu estava no mundo das pessoas, eu era extremamente
sensível aos barulhos”. (Grandin & Scariano, 1986,p.23).
Temple Grandim (1992),
relata que seus problemas sensoriais, estavam presentes desde a infância.
Refere que sua percepção auditiva é como um aparelho de audição com o volume
quebrado no máximo ou como um microfone aberto que pega qualquer barulho. Diz que
não consegue modular os estímulos auditivos que estão chegando, e que o barulho
de um shopping center ou de um secador de cabelo são extremamente
desconfortáveis para ela. Barulhos altos e que surgem de surpresa são uma
tortura (fogos de artifício, por exemplo). Diante deste panorama, segundo
Temple Grandin, só existem duas possibilidades: ficar "ligada" e
sofrer com a enxurrada de sons ou se desligar. Por este motivo, segundo ela,
muitos autistas oscilam entre reagir de forma exagerada ou não reagir diante de
um estímulo auditivo.
Em alguns momentos,
uma criança com autismo tampa os seus ouvidos para evitar sons dolorosos e em
outros se comporta como se fosse surda.
Grandin afirma que,
ainda hoje, ocorrem momentos em que sua audição desliga (shuts off) e que isto
pode ocorrer durante uma conversação ou quando esta ouvindo uma música no
rádio.
Para
White & Withe (1987), pais de um autista, as anormalidades na percepção sensoriais
seriam a origem dos problemas dos autistas. Ressaltam a inconsistência das respostas
aos estímulos: por vezes parecem não ouvir, ver ou sentir dor; em outros momentos,
reagem de forma desproporcional a um estímulo. Darren Withe, filho dos autores White
& Withe (1987), descreve suas dificuldades sensoriais para perceber
estímulos auditivos. Relata que seus ouvidos parecem trocar subitamente o
volume dos sons ao seu redor: a fala de outra criança em um determinado momento
parece tão baixa que ele nem consegue ouvir e, em
outro, soa como um tiro, tendo a sensação de que vai ficar surdo. Da mesma
forma, o barulho de um aspirador de pó ou de um liqüidificador é capaz de
causar terror. Relata que na segunda série participou de uma ida com a escola
para o zoológico e que, nesta ocasião, o barulho do motor do ônibus e os
barulhos dos animais quase o fizeram "sair da própria pele". Mas que
na volta do passeio, ao contrário, não conseguia ouvir o barulho do motor do
ônibus. Darren conclui dizendo que estes sintomas melhoraram com o tempo, mas que
antigamente pensava que estas alterações aconteciam com todas as pessoas e por
isso não comentava com ninguém sobre este assunto.
Cesarone & Garber
(1991) relatam peculiaridades sensoriais encontradas em dois autistas de alto
funcionamento (high functioning) de 27 e 13 anos. O mais velho (Jim), relata uma
alteração da sensibilidade tátil, especialmente na face, que o deixa confuso com
relação ao local e natureza do estímulo. Refere-se ao estímulo tátil como algo
muito intenso, por vezes doloroso. Para Jim, processar o estímulo sensorial é
algo muito complicado. Relata que, por vezes, os canais sensoriais se
confundem, e que fica difícil dizer por qual via sensorial um determinado
estímulo está chegando. Exemplifica citando o fato de que, em alguns momentos,
os sons chegam como cores ou podem ser acompanhados por uma vaga sensação de
forma, textura, odor ou sabor. Refere que um determinado estímulo interfere no
processo de percepção de outro: para ler uma
placa de trânsito, desliga o rádio; para testar o gosto de algo na cozinha,
desliga os eletrodomésticos. Jim teoriza que podem existir estímulos "gatilho"
capazes de desorganizar de imediato o processo sensorial. No seu caso, diz que
sons de baixa freqüência (como os encontrados em determinadas músicas) são
capazes de desencadear a desorganização sensorial, tornando a percepção de outros
estímulos muito confusa.
Albert, o outro
autista descrito por Cesarine & Garber (1991), refere que os estímulos táteis
são muito intensos e que doem. Para Temple Grandin (1992), os estímulos táteis também
trazem dificuldade para o dia-a-dia. Relata que determinados tecidos ou roupas causam
grande desconforto, e que é muito difícil se adaptar à sensação de usar saia
quando está acostumada com a sensação de usar calça.
Com relação a estes
relatos autobiográficos, é importante que fique claro que a maioria se origina
de autistas de alto funcionamento (high functioning) , com capacidade verbal
para expressar como percebem determinados estímulos sensoriais. Não
necessariamente esta percepção corresponde à forma como representantes de
outros subgrupos percebem os estímulos sensoriais. De qualquer modo, estes
relatos autobiográficos abrem caminho para se compreender determinados
comportamentos que, a princípio, parecem sem sentido para os não-autistas.
No dia-a-dia da
prática clínica, também surgem relatos com relação às peculiaridades sensoriais.
Observações de pais e relatos de autistas reforçam as questões levantadas
acima.
Autistas de alto
funcionamento perguntam por que os sons doem tanto nos seus ouvidos. Dizem
odiar o som dos fogos de artifício, do liqüidificador e da descarga do
banheiro. Recentemente, uma adolescente relatava que o barulho da sala de aula
lhe era insuportável e referiu melhora dos seus sintomas quando passou a usar
um protetor de ouvido de natação para ir à escola.
Pais referem que
determinados estímulos táteis (como por exemplo, a presença de uma etiqueta na
roupa) é capaz de causar desespero nos seus filhos. São observações muito importantes
de serem compreendidas, pois muitas vezes são fatores desencadeantes de graves distúrbios
do comportamento (como ataques de birra). A procura de uma relação de causa e efeito entre um determinado estímulo
sensorial e um comportamento inadequado, é fundamental no sentido de elaborar
estratégias para amenizar estes problemas no dia-a-dia.
Certamente este tipo
de avaliação tem que ser realizada no ambiente real da criança. Dificilmente em
um ambiente estranho, no qual se está realizando um experimento, representará
de modo fiel o ambiente natural da criança.
Fonte: PROBLEMAS SENSORIAIS E DE
ATENÇÃO NO AUTISMO: UMA LINHA DE INVESTIGAÇÃO (tese de Carla Gikovate) – parte do
texto. Recomendo !!!